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Sexta, 04 de agosto de 2023 - 10:40:15
A entrevista 'escondida' de Elis Regina que viralizou depois de 43 anos
CURIOSIDADES
Confirmação da veracidade de áudio da cantora envolveu entrevista com uma perita, um autor de biografia, um ex-repórter e também com um dos filhos de Elis, entre outros.

Em um áudio que viralizou no Tiktok em julho, uma Elis Regina furiosa dizia que preferia cantar dentro de uma fábrica a se apresentar no Riocentro, no Rio de Janeiro, onde haveria um show alusivo ao 1º de Maio, Dia do Trabalho.

 

"Eu vou cantar numa fábrica dia 1º de Maio. (...) o Mario Lago já descolou essa fábrica. Vou levar Saudade do Brasil para dentro de uma fábrica. (...) Riocentro não tem operário que consiga chegar porque operário não tem carro para ir ao Riocentro e nem 400 paus para pagar ingresso. Vamos parar de palhaçada, porra. (...) Eu não vou a show apresentado por patrão", disse em um trecho.

Em pouco mais de um minuto e meio, Elis critica a elitização da música: "Cadê a Angela Maria? Cadê o Jamelão? Cadê o Agnaldo Timóteo? Por que essa elitização, c******?"

A entrevista se tornou viral como contraponto a uma propaganda em que uma Elis Regina —recriada por inteligência artificial— canta com a filha Maria Rita "Como nossos pais", clássico de Belchior que fez sucesso nos anos 1970 na voz de Elis. O comercial faz alusão aos 70 anos da Volkswagen no Brasil.

Mas, em tempos de fake news, ficou a dúvida: será que Elis deu de fato a tal entrevista?

Não havia nenhum registro confiável na internet de que Elis de fato havia falado. Um dos primeiros a ser consultados pelo g1 foi João Marcello Bôscoli, um dos filhos da cantora. "A veracidade, se realmente é ela, eu acredito que seja, mas poxa vida, hoje em dia, com todas as técnicas, não é uma coisa que eu tenha certeza", disse.

Bôscoli tinha tido contato pela primeira vez com a entrevista da mãe havia "dois ou três anos". Ele indicou duas pessoas da sua confiança e contemporâneas de Elis, mas ambas tampouco tinham detalhes.

Perfil no TikTok compartilha áudio viral de Elis — Foto: Reprodução

Perfil no TikTok compartilha áudio viral de Elis — Foto: Reprodução

 

Mestre em Linguística pela UERJ e doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP, a perita e fonoaudióloga forense Renata Christina Vieira comparou o áudio do Youtube (maior que o áudio viral) com entrevistas públicas de Elis Regina. Ela concluiu que o resultado "suporta fortemente" a hipótese de que a voz seja de Elis Regina.

Uma pesquisa no Google pelas expressões usadas na entrevista mostrou que uma tese de doutorado reproduzia a entrevista. Autor da tese, Robson Pereira da Silva mencionou a fala da cantora no trabalho "Elis Regina: dou o tiro, quem mata é Deus - Performances da cena e da crítica na construção de uma intérprete do Brasil (1964-1978)", apresentada na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). "Não se trata de uma entrevista publicada. Ela me chegou via áudio", diz.

À reportagem, Robson deu a primeira pista: a entrevista era real e havia sido concedida em 1980, no Canecão, extinta e tradicional casa de shows na Zona Sul do Rio, para um grupo de repórteres. Sua indicação reforçou a credibilidade para uma versão mais ampla da entrevista, disponível em um canal do Youtube.

O dono do canal, o poeta e escritor Fernando Graça, por sua vez, havia retirado a entrevista de uma página no Facebook chamada "Analisando Elis Regina", formada por fãs da cantora. Fernando deu outra pista: um conhecido dele, o cantor Marco Tonio Muylaert, tinha feito menção, numa conversa, a uma fita com a entrevista de Elis. Uma possível segunda pista. Graça forneceu o contato de Muylaert.

 

Muylaert então revelou ter participado como repórter da entrevista -- e que não se lembrava onde o conteúdo tinha sido publicado. Na ocasião, anos 1980, ele trabalhava para publicações da editora Bloch, entre as quais "Mulher de Hoje" e "Sétimo Céu".

E deu o contexto da fala da Elis: ela estava irritada por ocasião da prisão de Lula dias antes. O atual presidente era sindicalista e havia sido preso em 19 de abril de 1980, pelo regime militar de então, quando liderava negociações entre trabalhadores e empresários por aumentos salariais no ABC. Ele foi solto 31 dias depois.

"Essa fita foi dentro do Canecão, em 81, eu não sei se era 80. Foi durante a temporada do Saudade do Brasil. E o Lula tinha sido preso, alguma coisa lá do ABC. Tanto que, durante o show, a Elis falava assim: 'Ao pessoal do A, do B e do C'. E ela estava muito exaltada por causa da prisão do Lula. Ele era apenas do ABC, ele era um sindicalista. Ela ficou muito incomodada com isso. Ela falou: 'Agora vão soltar os cachorros em cima da gente.' Era repressão pura. Ela ficou muito incomodada. Mas ela xingou todos os palavrões do mundo", afirmou.

Muylaert não se lembrava em qual publicação a entrevista tinha sido publicada, nem a edição.

Faltava então o registro físico da entrevista, para provar que a conversa de fato havia existido. Césio Vital Gaudereto é colecionador de revistas antigas e mantém o blog "Tudo Isso é TV", onde coloca reproduções de publicações de sucesso nos anos 1970 e 1980.

Em uma busca pela edição de maio de 1980 da Sétimo Céu, um jovem e sorridente Kadu Moliterno posava na capa em uma reportagem que anunciava o amor dele por Glória Pires. Embaixo, ainda na capa, uma chamada exibia: "Revelações surpreendentes de Elis Regina".

Entrevista  com Elis publicada na revista Sétimo Céu — Foto: Reprodução

Entrevista com Elis publicada na revista Sétimo Céu — Foto: Reprodução

 

Havia no blog apenas a imagem em formato JPG da revista —o que impedia que ela aparecesse em mecanismos de busca quando a procura era feita pelas palavras-chave da entrevista.

Gaudereto indicou ao g1 o dono da revista em papel, Henrique Uessler, que a folheou para a reportagem, durante uma chamada de vídeo, até a página da entrevista —indicando não se tratar de montagem o print do blog.

No papo, a entrevista com Elis reproduzia vários trechos citados no áudio que viralizou no Tiktok, como quando diz que não iria "a show apresentado por patrão" e defendia a realização de apresentações em fábricas para os operários.

Era o fim da busca: a entrevista era real.

 

Texto/Fonte: G1