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Wednesday, 22 de October de 2025 - 07:24:41
Clonazepam, o calmante mais vendido do país, revela epidemia de uso prolongado e vício entre brasileiros acima dos 60 anos
DEPENDÊNCIA SILENCIOSA ENTRE IDOSOS

O clonazepam, princípio ativo do conhecido Rivotril, é hoje o calmante mais consumido do Brasil — foram 39 milhões de caixas vendidas apenas em 2024, segundo a Anvisa. Criado para uso em crises agudas de ansiedade, pânico e insônia, o medicamento acabou se tornando parte da rotina de milhões de idosos, que enfrentam uma dependência crescente e silenciosa.

Nos consultórios, médicos ouvem relatos repetidos: “Se eu não tomar, não durmo.” “Sem ele, fico agitada.” Para o neurologista Alan Eckeli, da USP de Ribeirão Preto, essas frases revelam o uso contínuo e sem acompanhamento. “O efeito é rápido e eficaz, mas é exatamente isso que o torna perigoso”, explica. “Muitos pacientes renovam a receita há anos e nem lembram quando começaram.”

A banalização começa na prescrição: médicos sem formação em sono ou saúde mental tratam a insônia como sintoma, e não como doença, perpetuando o uso. O resultado é uma geração de brasileiros que envelheceu com o remédio — e agora sofre com os efeitos colaterais, como perda de memória, quedas e prejuízo cognitivo.

Dados do PNAUM (Pesquisa Nacional sobre Uso de Medicamentos) indicam que 2 milhões de idosos utilizam benzodiazepínicos, e 41% deles tomam clonazepam. Apesar de ser de tarja preta e exigir receita azul retida pela farmácia, o remédio é barato (menos de R$ 6) e disponível no SUS, o que contribui para seu consumo em larga escala.

A popularidade vem tanto do baixo custo quanto da ação prolongada — o calmante age por até 24 horas, garantindo sono e tranquilidade contínuos. Mas, como alerta o geriatra Pedro Curiati, do Hospital Sírio-Libanês, essa mesma meia-vida longa faz com que o fármaco se acumule no organismo dos idosos, aumentando o risco de confusão mental e dependência.

A psiquiatra Simone Kassouf, da rede Somente, afirma que até um quarto dos pacientes que atende já chega usando o medicamento, muitos há mais de uma década. “A medicação gera conforto, mas não resolve o problema. O corpo se adapta e o efeito diminui — o paciente aumenta a dose e o vício se instala”, diz.

Outro desafio é o vínculo emocional com o calmante. “Para muitos, ele preenche vazios de solidão, luto ou dor crônica”, explica Camilla Pinna, da UFRJ. O cérebro se acostuma a relaxar apenas com o remédio, e a tentativa de parar provoca o chamado efeito rebote, com ansiedade e insônia intensificadas.

O desmame, alertam os especialistas, deve ser lento e supervisionado. A retirada abrupta pode causar crises de abstinência severas. Terapias como a cognitivo-comportamental (TCC), associadas a mudanças de hábitos — como atividade física, luz solar e rotina de sono regular —, são consideradas as estratégias mais seguras.

Para o psiquiatra Tales Cordeiro, do Instituto de Psiquiatria da USP, o fenômeno reflete uma “geração Rivotril”, iniciada nos anos 1990, quando o clonazepam era visto como solução rápida para todos os males. “Hoje, aos 70 ou 80 anos, muitos ainda o tomam diariamente — o remédio virou parte da identidade deles”, afirma.

O retrato que emerge é o de um envelhecimento ansioso e solitário, sustentado por um medicamento que promete descanso, mas rouba vitalidade. Como resume Eckeli, “o clonazepam induz o sono, mas não o sono de qualidade. É um alívio que cobra caro — em lucidez, memória e autonomia”.

Texto/Fonte: G1