Muito antes de se tornar a Rainha da Sofrência, Marília Mendonça já moldava os rumos da música sertaneja nos bastidores da indústria. Aos 12 anos, compôs “Minha Herança”, canção sobre um primeiro término, e, um ano depois, foi contratada pela produtora goiana Workshow como compositora. Sua escrita intensa, direta e emocional logo a tornou uma referência silenciosa para toda uma geração de artistas.
No segundo episódio do podcast “Marília – o outro lado da sofrência”, do g1, são reveladas as raízes do estilo que se tornaria marca registrada da cantora — as chamadas músicas “mariliônicas”. O termo, usado por compositores como Vinicius Poeta, define composições densas, com tensão emocional à flor da pele e enredos fortes, características presentes nas criações da artista desde a adolescência, quando passava madrugadas compondo em seu quarto.
João Gustavo, irmão de Marília, relembra a rotina intensa de composição e os primeiros equipamentos que ela usava, como o MP3 e o notebook que a mãe comprou. “Ela se lamentava pelo amor perdido às seis da manhã, porque era esse o horário em que acordava para ir à escola”, contou ao podcast.
Wander Oliveira, empresário da Workshow, ficou impressionado com a força de suas letras e a contratou com salário fixo de R$ 3 mil — valor que Marília usava para ajudar a família. Logo, suas composições começaram a ser gravadas por grandes nomes do sertanejo, como Henrique & Juliano, Maiara & Maraisa e João Neto & Frederico.
A intensidade emocional de Marília transbordava para muito além da técnica musical. Segundo o compositor Vine Show, “tudo nela era demais” — amor, raiva, alegria, tristeza. E ela não escondia sua paixão pelo brega, estilo que ajudou a popularizar mesmo sendo historicamente marginalizado. O compositor Vinicius Poeta define o estilo “mariliônico” como aquele com suspense harmônico, letras diretas e sentimento bruto. Já a cantora Luiza Martins afirma que o mercado sertanejo ficou “emariliado” após sua ascensão.
Musicalmente, Marília misturava acordes maiores e menores, criando atmosferas dramáticas e surpreendentes. Gustavo Vaz, músico entrevistado no podcast, explica que ela usava acordes de empréstimo modal — técnica rara no sertanejo — para ampliar o impacto emocional das composições. Exemplo disso está em “Infiel”, um de seus maiores sucessos, com melodia densa e letra direta, que subverteu o papel da mulher traída na narrativa tradicional do gênero.
Marília também era reconhecida pela capacidade de síntese. Canções como “Cuida Bem Dela” (gravada por Henrique & Juliano) revelam histórias complexas em versos simples, mas carregados de sentimento — sem julgamentos e com um olhar feminino contundente.
Antes mesmo de estrear como cantora, suas composições já eram disputadas por artistas. Em 2015, aos 19 anos, decidiu gravar o primeiro DVD. Quando questionada sobre qual gênero queria seguir, foi categórica: “Sou brega. Quero gravar brega.” Para isso, buscou parcerias no Nordeste com compositores como Vine Show e Vinicius Poeta. Deste processo criativo intenso nasceram faixas como “Hoje Somos Só Metade” e “4 e 15”.
O primeiro DVD foi gravado no estúdio de Eduardo Pepato, em Mairinque (SP), com um icônico lustre em forma de bateria. De lá saiu o clipe de “Infiel”, inicialmente não vista como aposta comercial, mas que se tornou um hino do sertanejo moderno — com uma mulher que confronta o traidor e a amante de forma inédita no gênero.
Em apenas três anos como cantora, Marília conquistou o respeito de ícones da música brasileira. Em 2018, Gal Costa gravou “Cuidando de Longe” e a chamou de “a rock 'n' roll da sofrência”. A canção, considerada “difícil demais para virar hit”, se tornou um marco da música popular por sua narrativa feminina potente.
Compositora precoce, Marília Mendonça deu voz ao que muitas mulheres sentiam, mas não encontravam na música. E mesmo antes da fama, já assinava um legado imenso, marcado pelo que hoje se conhece como estilo “mariliônico” — visceral, lírico, autêntico.