Após quatro dias sem celular, dormindo em barracas e encarando trilhas íngremes, os participantes do retiro cristão Legendários retornaram às suas rotinas carregando uma nova missão: serem os “sacerdotes do lar”. A cerimônia de encerramento em Salvador marcou o fim do processo com discursos patrióticos, exaltação da masculinidade cristã e recados diretos às esposas.
Ao longo do evento, que reuniu milhares de homens no interior da Bahia, a proposta era clara: moldar “homens de verdade” sob rígida disciplina e forte apelo espiritual. No último dia, os agora chamados legendários vestiam a camisa laranja do movimento e foram recebidos por familiares com festa, cânticos evangélicos e gritos de guerra. O hino nacional foi executado enquanto a bandeira do Brasil era hasteada – apesar de um contratempo com o mastro, que não impediu o simbolismo do momento.
A ideia central reforçada durante os discursos era a de que a transformação do país depende de homens íntegros, segundo os princípios cristãos. Para os organizadores, a corrupção moral e política nasce da ausência de lideranças masculinas espiritualmente firmes. O evento buscava preencher essa lacuna, incentivando seus participantes a se tornarem líderes familiares e espirituais — ou, nas palavras mais repetidas, “sacerdotes da casa”.
Momentos de humor também marcaram a despedida. Durante a foto oficial, um fotógrafo orientou os participantes a fazerem um “L” com o corpo, o que gerou piadas e uma rápida correção para “J” — sem esclarecer se a letra representava Jesus ou Jair. O tom político conservador esteve presente em falas genéricas contra a esquerda e a corrupção, embora o evento não tenha feito menções diretas a candidatos.
Antes da descida da montanha, os homens receberam seus bonés numerados. O repórter do g1, infiltrado na experiência, tornou-se oficialmente o legendário número 130.821, símbolo de quantos já passaram pela experiência em todo o mundo. Em clima de despedida, já nos ônibus, ex-participantes contaram que muitos voltam para “servir” como voluntários — com custos próprios e enfrentando as mesmas condições dos novatos.
De volta à Igreja Batista da Lagoinha, em Salvador, os legendários foram recepcionados com cânticos, vídeos motivacionais e uma trilha sonora que misturava rock e hinos militares cristãos. A cerimônia teve clima de apoteose: corredores humanos, celulares no alto, balões coloridos e lágrimas.
O ponto alto foi o testemunho de Jucemar Moreira, 64 anos, diagnosticado com Parkinson, que conseguiu concluir todo o percurso. Seu relato comoveu os presentes, e um dos voluntários revelou que, ao conhecer a história de Jucemar, sentiu-se tocado pelo Espírito Santo. Empresário do setor médico, ele prometeu doar um tratamento estimado em mais de R$ 220 mil ao colega de fé, caso ele seja considerado apto à cirurgia.
Na reta final, a esposa do diretor do evento assumiu o microfone e falou às mulheres – chamadas de ladies – presentes na cerimônia. Em seu discurso, reforçou valores conservadores sobre o papel feminino no casamento, defendendo a “unidade conjugal” e criticando decisões financeiras independentes. “Se você compete, você joga o seu marido lá embaixo”, afirmou.
O evento chegou ao fim após quase quatro horas de celebração. O repórter, embora agora portador de um número legendário, revelou em seu diário que não se considera parte do movimento. “Boa parte das ideias propagadas vai na direção oposta às minhas convicções como cristão”, escreveu. Ainda assim, disse ter testemunhado entre os colegas uma sincera busca por transformação pessoal.
O especial do g1, publicado em quatro capítulos, documenta de forma inédita o funcionamento e os bastidores do Legendários, movimento que cresce entre homens evangélicos no Brasil com uma combinação de fé, disciplina, retórica patriótica e visão tradicional de família.