A consolidação de facções criminosas em algumas das praias mais famosas do Nordeste brasileiro tem transformado cenários paradisíacos em territórios silenciosamente dominados pelo crime organizado. A BBC News Brasil ouviu moradores, autoridades e especialistas para revelar como Porto de Galinhas (PE), Pipa (RN) e Jericoacoara (CE), entre outros destinos turísticos, se tornaram áreas de atuação de grupos violentos, que impõem regras locais e controlam atividades cotidianas, enquanto tentam manter uma aparência de tranquilidade para não afetar o fluxo de turistas — e os lucros.
Por trás desse fenômeno está a expansão de facções brasileiras para além das capitais e fronteiras. “São como filiais do negócio de drogas”, afirma o promotor Eduardo Leal dos Santos, de Ipojuca (PE), que investiga a atuação da facção Trem Bala. Segundo ele, o dinheiro que circula com festas e turismo de alto padrão atrai organizações como o Comando Vermelho, o PCC e o Sindicato do Crime.
O caso do adolescente paulista morto em Jericoacoara no fim de 2024 marcou um divisor de águas para o Ceará. A polícia concluiu que ele foi confundido com membro de uma facção rival. O crime ganhou repercussão nacional e revelou a fragilidade da segurança local diante do domínio do Comando Vermelho. Desde então, moradores relatam uma retração estratégica da facção para evitar atrair mais atenção.
Em Pipa (RN), a estrutura é descrita como empresarial. O Sindicato do Crime, surgido no Presídio de Alcaçuz, organiza funções como “vapores” e “visões”, com turnos e regras internas, incluindo estatuto com 21 artigos. A venda de drogas já chegou a ser feita em galeria comercial. Embora recentes operações tenham prendido líderes e apreendido drogas, moradores e policiais alertam que o crime rapidamente se reorganiza.
Porto de Galinhas, em Pernambuco, é exemplo da convivência entre o luxo do turismo e o medo da violência. A facção Trem Bala, também chamada Comando do Litoral Sul, impõe toque de recolher, instala câmeras em comunidades como Salinas e Pantanal e exige que agentes públicos se identifiquem para circular. "É normal saber quem é o olheiro, o pistoleiro ou o gerente de boca", diz Ricardo, morador.
O medo também se espalha entre comerciantes. Luzia, ex-empresária de Porto, relata crises de ansiedade após ser obrigada a fechar seu negócio durante um toque de recolher. Uma menina foi assassinada por pequenos furtos, e a Promotoria da Criança já identificou cemitérios clandestinos em manguezais. “Tem uma cultura de decapitar com escopeta calibre 12. Do peito para cima, não sobra nada”, detalha o promotor Santos.
Mesmo com a aparência de paz em vilas como Jericoacoara, há relatos de assassinatos, agressões e tribunais do crime. "A gente não sente que vai ter confronto, porque há um acordo velado", diz José, morador. Mas a sensação de estabilidade é frágil. Em março, uma mulher foi morta diante da igreja principal por não obedecer ordens da facção.
O crescimento do turismo e a mudança no perfil dos visitantes contribuíram para o enraizamento desses grupos. "Virou turismo de entretenimento: sexo, drogas e rock and roll", diz Carla, moradora de Jericoacoara, que cogita sair da vila após episódios de violência. “Drogas sempre existiram, mas o público mudou e ampliou”, completa.
Além de Porto, Pipa e Jericoacoara, há registros da atuação de facções em São Miguel dos Milagres (AL), Trancoso e Caraíva (BA). O promotor Santos afirma que onde há concentração de dinheiro e ausência do Estado, o crime se instala. Em apenas um caderno de contabilidade apreendido em Porto de Galinhas, a Polícia identificou um movimento de quase R$ 10 milhões anuais.
Para pesquisadores como Artur Pires e Eduardo Matos de Alencar, a estrutura do tráfico nestas regiões é alimentada tanto por falhas na segurança pública quanto pela própria demanda dos visitantes. O avanço das facções é facilitado por características como proximidade com portos estratégicos, ausência de fiscalização e aumento do turismo liberal.
Apesar das promessas de combate ao crime, operações policiais muitas vezes têm efeitos limitados. Segundo fontes, as prisões acabam eliminando rivais e fortalecendo o grupo dominante. A Polícia Civil de Pernambuco afirma que monitora e coíbe a atuação dessas organizações e que realizou, em abril, uma operação com 53 mandados de prisão. Já a Polícia do Rio Grande do Norte afirma que o combate ao crime organizado tem contribuído para a queda nos homicídios em Pipa.
No entanto, os moradores continuam vivendo sob leis paralelas, nas quais qualquer desvio pode ser punido com violência extrema. Em comunidades turísticas do Nordeste, a promessa de paraíso esconde uma realidade de medo, controle e impunidade. Como diz uma moradora: “A população já se acostumou com a lei do crime.”