O g1 acompanhou durante dois meses a atuação de grupos virtuais que comercializam documentos médicos falsos, um mercado que se expandiu vinte vezes nos últimos sete anos e hoje circula principalmente no Telegram. A prática envolve desde a venda de receitas e atestados adulterados até a oferta de laudos e exames, movimentando milhares de usuários e obrigando órgãos reguladores a buscar soluções para conter o avanço.
A investigação mostrou que a negociação é simples: no Telegram, basta um clique para encontrar vendedores, enquanto em plataformas como Facebook e Instagram há até anúncios patrocinados. Já no X e no TikTok, a oferta aparece em postagens e comentários. Em geral, os negociadores usam identidades falsas, mas fornecem contatos de WhatsApp para concluir as transações.
As receitas brancas, usadas para medicamentos sem controle especial, custam cerca de R$ 30 e vêm preenchidas com dados de médicos, carimbo e QR Code ativo que remete a documentos falsamente autenticados. Para psicotrópicos e entorpecentes, os vendedores oferecem versões azuis e amarelas por cerca de R$ 70. Nesse caso, o cliente recebe um PDF “vitalício” e pode reutilizar a prescrição indefinidamente, apenas alterando nome, dosagem, data e medicamento.
Para evitar suspeitas, os vendedores recomendam que os compradores utilizem farmácias de menor porte, consideradas mais flexíveis na checagem. Em grupos com milhares de participantes, os usuários trocam feedbacks sobre a eficácia dos documentos. “Quatro dias de férias graças a vocês”, escreveu um cliente ao exibir uma foto de viagem após usar um atestado falso.
O pesquisador Ergon Cugler, do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop/CEAPG/FGV), identificou 28 mil usuários em comunidades de venda de documentos médicos fraudulentos. Apenas em 2025, até julho, os conteúdos já haviam alcançado quase meio milhão de visualizações.
O problema tem afetado diretamente médicos que descobrem seus dados usados de forma criminosa. Para tentar reduzir o impacto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) implementou um sistema nacional que gera números de receitas controladas vinculados a médicos específicos, funcionando como uma espécie de cartório digital. A fase piloto da plataforma prevê integração com sistemas de prescrição, autenticação automática e checagem em tempo real nas farmácias.
Já o Conselho Federal de Medicina (CFM) busca na Justiça autorização para utilizar o Atesta CFM, sistema que notifica médicos sempre que um atestado é emitido em seu nome, permitindo confirmar ou negar a autenticidade. A ferramenta incluiria biometria, assinatura digital e integração com plataformas oficiais, mas está travada por uma liminar movida por empresas de tecnologia que acusam o CFM de tentar monopolizar o processo.
As plataformas digitais, por sua vez, têm adotado respostas diferentes. O TikTok afirmou ao g1 que conta com mais de 40 mil profissionais para remover conteúdos nocivos e que continua excluindo perfis ligados à venda de documentos falsos. Já Google, Meta e X não se manifestaram. O Telegram também não respondeu, reforçando a dificuldade de responsabilização, já que não possui sede ou representante legal no Brasil.
Enquanto isso, os grupos continuam ativos, reunindo milhares de membros e oferecendo receitas, atestados e exames fraudulentos como se fossem mercadorias comuns, em um comércio clandestino que desafia tanto autoridades sanitárias quanto o sistema médico do país.