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Friday, 03 de October de 2025 - 13:45:38
Por que o fígado transforma o metanol em um veneno silencioso no organismo
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O fígado, normalmente responsável por neutralizar toxinas, acaba desempenhando papel inverso quando entra em contato com o metanol. Ao tentar processar essa substância, o órgão a converte em compostos ainda mais tóxicos, como o formaldeído e, principalmente, o ácido fórmico — este último considerado o verdadeiro responsável pelos efeitos devastadores, que podem incluir cegueira e até a morte.

Felipe Lukacievicz Barbosa, professor da Universidade Positivo, explica que o fígado age como um “laboratório químico” do corpo, utilizando enzimas para transformar substâncias nocivas em compostos mais seguros. Esse processo funciona bem com o etanol, presente em bebidas alcoólicas comuns, mas não com o metanol. “Ele gera substâncias que atacam as células. É um veneno silencioso”, resume.

Enquanto o etanol é metabolizado pela enzima ADH em acetaldeído e, depois, convertido em acetato pela ALDH sem maiores danos imediatos, o metanol tem destino diferente. “É como se o fígado acreditasse que está cumprindo sua função, mas fabrica compostos letais”, explica a hepatologista Natália Trevizoli, do Hospital Sírio-Libanês. A médica Lisa Saud, do Hospital 9 de Julho, destaca a rapidez da ação: “O etanol leva anos para causar danos crônicos. O metanol pode agir em poucas horas”.

O ácido fórmico atinge especialmente as mitocôndrias, “fábricas de energia” das células, inibindo a enzima citocromo c oxidase e bloqueando a produção de ATP. “Sem energia, é como se os tecidos fossem desligados da tomada”, detalha Marcus Barbosa, professor da Unifran. Esse processo afeta em primeiro lugar o nervo óptico — explicando os casos de cegueira — e o sistema nervoso central, que pode levar a confusão mental, coma e até morte.

Além disso, o acúmulo de ácido fórmico provoca acidose metabólica, quando o pH sanguíneo cai abaixo dos níveis normais. Segundo Barbosa, isso compromete o funcionamento do coração, rins, músculos e pulmões. A professora Meire de Bartolo compara a situação a “peixes em um aquário que de repente se torna ácido”: um ambiente em que as células não conseguem sobreviver.

Após ingerido, o metanol é rapidamente absorvido pelo trato gastrointestinal e distribuído pelo organismo, passando pelo fígado, onde ocorre a transformação em ácido fórmico. Pequena parte pode ser eliminada pelos pulmões e rins, mas de forma insuficiente para evitar os danos.

O tratamento busca justamente impedir essa conversão. Antídotos como fomepizol (não disponível no Brasil) e o próprio etanol competem pela mesma enzima que metaboliza o metanol, bloqueando a reação que gera compostos tóxicos. “Isso dá tempo para o corpo eliminar a substância antes que ela cause sequelas irreversíveis”, explica Trevizoli. A eficácia, no entanto, depende de atendimento rápido.

Casos semelhantes ocorrem com outras substâncias. O etilenoglicol, presente em anticongelantes, ao ser processado pelo fígado, se transforma em ácidos que danificam os rins. Já em superdosagens de paracetamol, o órgão produz um metabólito altamente reativo, o NAPQI, capaz de levar à falência hepática.

Assim, o mesmo fígado que protege o corpo contra agentes nocivos pode, em algumas situações, tornar-se o catalisador de reações fatais.

Texto/Fonte: G1